Eles casaram, tiveram filhos e, entre tantos dias de convívio, poucos deles podem ser recordados com ternura ou boas lembranças. Enquanto eram apenas namorados a rispidez dele pouco aparecia. Eram flores e bombons. Festas e jantares. Um namorado de fazer inveja às amigas delas. Um homem de um amor escancarado. E uma mulher certa de ter encontrado a felicidade nos braços fortes do seu amado.
Depois do casamento ela continuou refém desses braços fortes, todas as noites. Só que agora esses braços eram muito mais fortes, tão fortes que deixavam nela marcas de um amor doente e conturbado. Eram horas de humilhação, de maus tratos, de espancamento mesmo. No início eram leves as agressões, coisas que ela julgava que conseguiria superar e fazê-lo mudar. Com o tempo tudo foi se intensificando.
Ela saiu do emprego para tentar agradá-lo e assim acreditando que voltariam a desfrutar de uma vida amorosa. Mas não adiantou. Logo depois, largou os estudos para amenizar o temperamento ciumento do marido e, quem sabe, ajudá-lo a retomar a lucidez. Mas em nada isso adiantou. Veio o filho e nem durante a gravidez as surras cessaram. O bebê nasceu prematuro devido ao estado emocional debilitado da mãe. Os médicos estranharam as marcas roxas na pele da mãe, mas não cabia a eles resolver aquela questão.
Depois da criança a situação chegou a piorar muito, pois agora não era só ela que precisava escapar da brutalidade do marido. Ela precisava, antes de tudo, proteger o filho que passou a ser mais um alvo daquela fúria infundada.
Ela guardava para si a sua dor, o seu medo. Ninguém sabia o que se passava naquela casa. Ela apanhava calada, pois temia que os vizinhos, ao ouvir gritos, chamassem a polícia e seu marido fosse prejudicado, sendo preso.
Um dia o bebê adoeceu. O marido estava fora, no trabalho. Desesperada a mãe saiu com o filho nos braços pedindo para alguém ajudá-la. Um vizinho a levou ao hospital público para que a criança fosse atendida. O bebê ficou horas em observação e o vizinho não saiu de perto daquela mãe aflita e tão estranhamente calada.
Já era madrugada quando eles voltaram. O marido abriu a porta, calado, olhar sério. A mãe ao ver aqueles olhos irritados sequer agradeceu ao vizinho pelo socorro prestado. Entrou. O cheiro de bebida saia pelos poros do marido, juntamente com o suor a cada esforço que ele fazia para bater na sua esposa. O bebê começou a chorar alto. A mãe apanhava calada, chorando, cansada, esgotada. Afastou-se do filho para que a atenção e a fúria do marido se voltassem apenas para ela.
O vizinho estranhou a reação daquele homem ao receber sua esposa em casa. E ouvindo os gritos do bebê resolveu ir até lá para ver o que acontecia. De ouvido na porta pôde escutar as pancadas e os sussurros dela pedindo clemência. Ele ficou nervoso e ligou para a polícia. Não demorou para que arrombassem a porta e lá estava aquela moça caída no chão, toda machucada. Aquele homem bêbado, um farrapo humano, caído sobre ela, numa sede incansável de bater. Um bebê frágil, chorando por instinto. Chorava sem parar.
Ainda puderam ouvi-la dizer: “Salvem meu filho e não machuquem meu marido. Eu o amo.”
Ela foi-se. Ali acabou uma história tão mal sucedida, de um amor mal amado, de uma doença, de uma covardia. Ali mais uma mulher que não soube perceber que existia além daquele marido psicopata. Mais uma vítima do silêncio. Mais uma que achou que amava demais e que pelo seu amor tudo valia a pena.
Ela cumpriu até o fim a promessa que fez diante do altar e lembrou disso antes de partir: "Eu o amei até que a morte nos separasse".
"Na saúde e na doença
Na riqueza e na pobreza
Até que a morte os separe."
Um comentário:
Como essa anônima, existem tantas que sofrem esses maus tratos e não denunciam. Por medo, por amor, ou por falta de amor próprio vai entender...
Assunto delicado esse.
Texto bonito, Parça.
Arrasou, mandou nem de novo! Parabéns!
Beijos!
Verônica
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